Carretera Austral, a estrada mais espetacular do planeta?
Quase todas as características e acidentes geográficos da Terra se sucedem, umas às outras, ao longo de seu caminho.
Ela é selvagem, vertiginosa, quase agressiva; pavimentada em alguns trechos, com cascalho, terra e lama na sua maior parte. Como um animal noturno, ela desliza entre fiordes e geleiras, vulcões e cadeias de montanhas, complexos lagos oceânicos e rios tão azuis que rivalizam com qualquer praia nas Filipinas.
Construída por um ditador com nome de conto de fadas, seu nome tem uma característica comum que só lugares épicos possuem, a de ficar guardado em algum lugar entre o nosso cérebro e nossos sonhos. Chama-se Carretera Austral, tem 1.240 quilômetros de extensão e é uma das razões pelas quais o Chile pode ser um dos países mais bonitos do planeta.
A Carretera Austral, um cardápio geográfico
Existem duas Patagônias: uma – a argentina – é plana, árida, quase infinita. A outra – a chilena – é selvagem, irregular, cheia de vida. Os Andes são a causa dessa diferença entre elas: de um lado, os imensos pampas; do outro, uma superfície irregular com um pedaço da crosta terrestre que se enruga como um acordeom, devido a erupções vulcânicas e terremotos. E no meio de todo esse caos, a Carretera Austral.
Chile, 1973
Um golpe aniquila o governo de Salvador Allende e dá lugar a quase duas décadas de regime militar. À frente, Augusto Pinochet, o – para o bem ou para o mal – principal arquiteto do desenvolvimento da Carretera Austral e responsável pelo sul do Chile começar a ser conectado, por terra, ao restante do país.
Até então, a cidade de Puerto Montt era o último ponto do Chile continental a ser alcançado por estradas. De lá, só era possível continuar de barco ou fazer um desvio monumental pelo país vizinho e seus infinitos pampas.
A Carretera Austral é uma das estradas mais estranhas do planeta. A culpa de tudo é do relevo chileno – dor de cabeça para qualquer engenheiro – com seus recantos, seus fiordes, suas geleiras e seus vulcões.
Quase desde o seu início, a 50 quilômetros de Puerto Montt, a Carretera Austral obriga você a desistir de sua rota inicial terrestre: um dos muitos fiordes e enseadas que cortam a costa obriga você a mudar para um meio de transporte típico do sul do Chile, o ferry boat.
Ao menos quatro interrupções ocorrem ao longo do caminho, forçando motos, ônibus, carros e pedestres a se deslocarem no ritmo lento das marés. Viajar pela Carretera Austral é como percorrer uma vitrine: quase todas as características geográficas da Terra se sucedem ao longo de seu percurso.
Primeiro vêm as antigas florestas de lariço – espécies que podem ter até 3.600 anos – dos parques nacionais Alerce Andino e Hornopirén. Delimitadas entre fiordes, essas florestas são as primeiras atrações que o viajante encontrará durante o passeio.
Mas a atenção logo se desviará para outro lugar: os vulcões Michinmahuida, Chaitén, Corcovado e Melimoyu saúdam o viajante lembrando-lhe que ele está num local isolado e que o planeta Terra governa lá (como aconteceu na erupção Chaitén em 2008, que transformou a cidade de mesmo nome em uma cidade fantasma).
Muito perto de Chaitén está outro parque nacional, com uma história pessoal de filantropia, desconfiança e ceticismo: o Parque Pumalín Douglas Tompinks. A vida de Douglas Tompkins seria um filme que valeria ser filmado.
Fundador das marcas North Face e Esprit, concentrou sua atividade nos esportes de aventura e foi no Chile que fundou seu Jardim do Éden. Isso o levou a deixar o mundo dos negócios e se voltar para a conservação e a ecologia. Sob o lema de que se poderia viver das florestas sem derrubá-las, seu primeiro passo foi comprar 17.000 hectares – no que hoje é o parque Pumalín – para proteger a floresta nativa do desmatamento descontrolado.
Isso foi seguido por mais compras de terras em outras partes do sul do Chile. Esses movimentos geraram ceticismo e oposição política, provocando certa desconfiança social. Anos tiveram que passar antes que as pessoas começassem a acreditar em suas boas intenções.
Em dezembro de 2015, tendo abandonado sua vida de ambientalista e em vias de ceder grande parte do Pumalín ao estado chileno, Tompkins morreu após sofrer hipotermia quando seu caiaque virou no Lago General Carrera, um dos grandes pontos de interesse ao longo da Carretera Austral. Ele tinha 72 anos quando se despediu de uma das atividades que o levaram àquele lugar remoto da Terra.
Geleiras
É estranho para quem não está acostumado a vê-las. Ao cruzar o lago Yelcho, logo após a reconstrução da cidade de Chaitén, elas começam a aparecer em ambos os lados da estrada, empoleiradas nas montanhas.
São geleiras, cujas “línguas” – em alguns casos muito consumidas pelo aumento da temperatura terrestre – anunciam a chegada a regiões mais frias. O próximo ponto de interesse da rota é justamente uma geleira. É a Geleira Suspensa ou Queulat, uma geleira com espírito de alpinista.
Localizado perto do povoado de Puyuhuapi –fundado por colonizadores da Europa Central, cuja marca pode ser vista na arquitetura local–, o Queulat é uma das geleiras mais espetaculares do mundo por sua localização: empoleirada em uma saliência, parte de sua “língua”,salta da montanha cuspindo o gelo derretido em duas imponentes cachoeiras.
Depois das geleiras, há um pouco de calmaria na rota. Coincidindo com os trechos finais de asfalto da Carretera Austral, a estrada chega a Coyhaique, a última grande cidade da estrada.
A partir daqui, em poucos quilómetros começará o rípio (cascalho) – que se prolongará até ao final do percurso, em Villa O’Higgins – e um rosário de vilas e aldeias espalhadas entre lagos e montanhas. Montanhas como Cerro Castillo, um pico proeminente que guarda uma lagoa cintilante perto de seu topo, e lagos como o incrível General Carrera, o lago que pensa que é oceano.
O lago-oceano que atravessa fronteiras e o campo de gelo norte da patagônia
Chile e Argentina nem sequer concordam em nomear os lagos. É o que acontece com o General Carrera/Buenos Aires, dois nomes que, na verdade, não explicam nada, pois mencionam apenas a parte que corresponde a cada país daquele que é o segundo maior lago da América do Sul.
O povo Tehuelche – originário da região – sabia chamar as coisas pelo nome antes da existência dos dois países. Chelenko (águas turbulentas) era o nome usado para reconhecer aquela massa de água de 978 quilômetros quadrados que produz ondas de até três metros devido ao sopro dos ventos patagônicos: um oceano no meio da Cordilheira dos Andes.
Essas águas turbulentas do Chelenko – as mesmas onde Douglas Tompkins perdeu a vida – são a grande joia que atrai centenas de viajantes a esta região, graças à sua cor azul turquesa, que empalideceria as melhores praias do Pacífico.
Mas suas águas também contêm vários tesouros de pedra. Puerto Río Tranquilo, às margens do Chelenko, é um dos pontos turísticos mais importantes da Carretera Austral.
É por dois motivos. O primeiro, por ser o ponto de partida das –muito– numerosas expedições de barco que levam os turistas às Capelas de Mármore, um conjunto de cavernas escavadas na superfície de mármore das paredes de Chelenko.
A segunda razão é que Río Tranquilo é o lugar povoado mais próximo de um dos territórios mais selvagens da Patagônia chilena: o campo de gelo do norte da Patagônia. Uma vasta extensão de gelo glacial localizada na região chilena de Aysén e conhecida como o campo de gelo do norte da Patagônia.
Um aglomerado de gelo antigo de 4.200 km². Muito menor que o gigantesco campo do sul (16.800 km²), o campo de gelo do norte da Patagônia é conhecido, sobretudo, pela presença da geleira San Rafael, a geleira do nível do mar mais próxima do equador do mundo.
É neste ponto, desde Puerto Río Tranquilo, que a Carretera Austral entra em uma nova fase de seu traçado: deslizar da melhor maneira possível entre os gigantes montanhosos do campo de gelo –a oeste– e a cordilheira andina. Não é uma tarefa fácil que, como compensação, premia o viajante com as melhores paisagens de todo o percurso.
Seguindo o rio Baker até Caleta Tortel
Para quem está acostumado a ver rios, dificilmente encontrará um da cor do rio Baker. Nascido das águas azul-turquesa do General Carrera (desculpe, Chelenko), o rio Baker – pronuncia-se ‘baquer’, como parece – acompanha a Carretera Austral nos primeiros quilômetros após sua nascente.
Este é um perigo real para todos que pilotam pela região: o olhar é inevitavelmente direcionado para aquela faixa azul impossível, que corre paralela à estrada. Mas a beleza tem prazo de validade: a poucos quilômetros de distância, o Baker recebe o Nef, acinzentado, como afluente, tornando-o mais abundante, mas fazendo-o perder parte de seu azul virginal.
Reduzida a atração do início, o viajante volta a concentrar sua atenção nas montanhas que se erguem dos dois lados da estrada, enquanto o Baker se separa do traçado da estrada. O que parecia um “divórcio inevitável” se transforma em uma reconciliação inesperada a poucos quilômetros da bifurcação que leva à joia sul da rota Austral: Caleta Tortel, a cidade das passarelas.
É difícil acreditar que, depois de ver florestas antigas, vulcões, geleiras suspensas e lagos e rios azul-turquesa, uma vila construída pelo homem possa surpreender a atenção já superestimulada do viajante. É o que acontece com Caleta Tortel.
Localizada no delta do rio Baker e cercada por ilhas e fiordes, Caleta Tortel sobrevive com base em passarelas de madeira em um ambiente onde seria melhor ter nascido com asas ou guelras.
Fundada em 1955, a Caleta Tortel não sabia o que era um carro até 2003, quando foi construída a ligação à Carretera Austral. Até então, todas as viagens eram feitas por via aérea e, sobretudo, por mar, conectando-se com as cidades de Puerto Montt (dois dias navegando para o norte) e Puerto Natales (quase três dias navegando para o sul).
Esta conexão marítima com Puerto Natales faz de Caleta Tortel um dos três principais pontos de conexão no limite sul da Carretera Austral. Os outros dois são Puerto Yungay, que foi por décadas o fim da Carretera Austral, e Villa O’Higgins, o ponto final, esperado por todo viajante sulista.
Villa O’higgings
Villa O’Higgins nasceu em 1966 como uma cidade-tampão. Na eterna –e doentia– luta fronteiriça patagônica entre Chile e Argentina –que um ano antes havia causado a morte de um carabinero no chamado “conflito do Lago Deserto”–, o estado chileno decidiu fundar uma cidade onde havia apenas um par de casas
Como quem faz uma jogada de xadrez, os habitantes da região, que há décadas habitavam um lugar sem nome, tornaram-se os fundadores da Villa O’Higgins, a cidade que serviria de “amortecedor” contra o vizinho incômodo.
Localizada no meio do nada, ao norte de outro lago de nome duplo (O’Higgins/San Martín), Villa O’Higgins emergiu de seu isolamento terrestre em 1999, quando o trecho de 111 quilômetros que a ligava a Puerto Yungay foi concluído. .
Transformada no marco final de uma das estradas mais espetaculares da Terra, Villa O’Higgins é o lugar dos sonhos de qualquer ser humano com desejo de aventura: cercada por lagos e montanhas e no limite norte do campo de gelo do sul da Patagônia, a terceira maior área de gelo continental do mundo, depois da Antártida e da Groenlândia.
Um total de 49 geleiras se desprendem dessa gigantesca área de 350 quilômetros de extensão, distribuída entre Chile e Argentina – entre as quais está o famoso Perito Moreno, um dos menores do grupo, comparado ao maciço Viedma (978 km²) ou Pio XI (com 1.265 km², o maior do hemisfério sul fora da Antártida).
De Puerto Montt a Villa O´Higgins. 1.240 quilômetros de viagem por um dos lugares mais selvagens do planeta, ziguezague entre vulcões e geleiras ao longo de uma estrada que sonha em continuar crescendo até se conectar com o verdadeiro limite sul do país –e do continente–: Puerto Williams, em Ilha Navarino, a nova cidade no fim do mundo.
Tradução : Redação A&V
Fonte: https://www.traveler.es/